A primeira vez que me ocupei de pensar sobre o conceito de pós-verdade foi em 2016, quando ocorria eleições nos EUA. Na ocasião já havia um clima de instabilidade, como se algo estranho e novo estivesse à espreita.
Posteriormente eu soube que naquele mesmo ano a expressão foi intensamente utilizada, a ponto de ser considerada a palavra do ano pelo Dicionário Oxford, designando as;
circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (SANTAELLA, 2019).
Desde então, no Brasil, atravessamos duas trevosas eleições presidenciais e um assustador processo de polarização política que já anunciava a complexidade dos caminhos que escolhíamos enquanto coletividade.
Naquele momento, para além de mentiras que são tradicionalmente utilizadas em processos eleitorais, conhecemos o poder das redes sociais e aplicativos de mensagens atuando na disseminação de fake news, em um patamar ainda não conhecido pela humanidade.
Seguindo este fluxo a experiencia da pós-verdade aprofundou-se e agora é percebida quase como parte da paisagem e marca fundamental deste tempo.
Pós-verdade designa, pois, uma condição, um contexto no qual atitudes de desinteresse e mesmo desprezo pela verdade se naturalizam, se disseminam, se tornam cotidianos, normais, e até mesmo estimulados. É essa característica que permitiria falar-se em uma “cultura da pós-verdade”. SANTAELLA, 2019
Como passageira desta nave rumo a não sei onde, vivo esta experiencia como um amargo retrocesso, como algo que se perdeu, porque afinal de contas como se vive coletivamente sem a verdade?
Mesmo que a verdade possa ser lida como um conceito filosófico e inacabado, ainda assim ela diz respeito a acordos de convivência, se acreditarmos que a verdade seja absolutamente relativa, temo que o resultado será a destruição ou a sua apropriação por modos de gestão da vida coletiva essencialmente totalitários. Afinal de contas em terras de autoritários, o dono da verdade é sempre o mais forte.
Trazendo a análise para meu campo de trabalho, que é a saúde mental, me pergunto como é possível viver de modo minimamente equilibrado sem a verdade como referência de estrutura. As marcas desta experiência subjetiva já são bem visíveis na clínica e na vida cotidiana. Apatia, confusão e descrença quanto a perspectivas de um futuro melhor perpassam o discurso de muitos de nós, e as diferentes formas de manifestação do sofrimento orbitam em torno desta ausência de esperanças e sustentação.
Para agravar este estado de coisas, logo mais saberemos como é estar em processo decisório, das eleições municipais no Brasil, só que agora diferentemente do que vivemos nas campanhas presidenciais de 2018 e 2022, nos confrontaremos com os efeitos das I.A´s para produção de vídeos e narrativas deepfake.
Em matéria sobre o promissor desenvolvimento de I.A´s no desenvolvimento de material áudio visual, o especialista Ronaldo Lemos alerta,
Vídeos são para nós humanos a prova mais confiável de que algo aconteceu. Nos últimos anos aprendemos que textos e imagens são facilmente manipuláveis. Mas e o vídeo? Para a maioria das pessoas isso é o que mostra que algo de fato ocorreu. Tudo isso agora cai por terra. Não dá mais para confiar em nenhum vídeo.
Mais do que isso .. poderá conjurar a IA para criar de obras monumentais inéditas a pornografia, fake news e interferências em campanhas eleitorais.
Diante da aproximação deste cenário, acho importante fazer uma análise retrospectiva para compreender como este fenômeno vem se consolidando e como podemos reagir a isto.
Tomo como referência o artigo: O fenômeno da pós-verdade: Uma revisão de literatura sobre suas causas, características e consequências, de Carlos Alberto Ávila Araújo.
Vamos aos pontos essenciais desta pesquisa;
A expressão “pós-verdade” congrega uma miríade de fenômenos que já vinham acontecendo há décadas, mas que se constelaram de um modo especifico apenas recentemente. McIntyre, aponta que;
a pós-verdade “esperou a tempestade perfeita que teria outros fatores como o viés partidarista extremo e os ‘silos’ das redes sociais que surgiram no começo dos anos 2000” (McINTYRE, 2018).
E sinaliza cinco fatores que conduziram à pós-verdade,
1. Negacionismo científico. Autoridade científica passa a ser questionada por pessoas comuns. Este processo foi impulsionado por interesses econômicos de determinados grupos empresariais. O marco de origem se deu na década de 1950, nos Estados Unidos, quando estudos científicos começaram a associar o fumo ao câncer. Foi criado então, a Tobacco Industry Research Committee, a fim de financiar “cientistas” que pudessem demonstrar o contrário, negando evidências conclusivas dos males causados pelo fumo.
A meta desta iniciativa era semear a dúvida e confusão junto ao público. Desde então, a estratégia foi utilizada por outros atores empresariais e políticos em relação a temas como o inverno nuclear, chuva ácida, buraco na camada de Ozônio e aquecimento global.
2. Viés cognitivo, viés de confirmação, ou dissonância cognitiva. Trata-se de uma tendência humana a formar crenças e visões de mundo não baseadas em evidencias ou fatos, com a finalidade de evitar angustia ou sofrimento psíquico.
3. Redução da importância dos meios de comunicação tradicionais, associado ao crescimento das redes sociais que se tornaram fonte de informação predominante para muitos, fenômeno conhecido como desintermediação.
4. Ascensão exponencial das redes sociais. Baseadas na livre e acelerada troca de informações, redes sociais são construídas a partir da lógica algorítmica e sistema de recomendação produzindo fenômeno conhecido como “efeito bolha”, onde se observa a criação de visões unilaterais dentro do espectro político mais amplo.
5. Relativização da verdade promovida pelo pós-modernismo, que em suas reflexões questionava a existência de uma verdade absoluta. Entendia que não existiria uma resposta absolutamente correta sobre o que cada elemento da realidade significa. Esta visão foi capturada por movimentos políticos e afirmava que tudo seria ideológico, e, portanto, não haveria “verdade”, apenas “fatos alternativos.
Kakutani (2019) acrescenta outros fatores que conduziram ao fenômeno da pós-verdade;
1. desvalorização da razão ( desdém pela razão, valorização da “sabedoria da turba”, isto é, das pessoas comuns, em detrimento de especialistas).
2. guerras culturais (desde a contracultura e o movimento pós-moderno, com uma apropriação populista consagrando a ideia de subjetividade, enfraquecendo a ideia de consenso).
3. cultura do narcisismo (ideia de que todas as verdades seriam parciais).
4. déficit de atenção (pessoas que não leem textos, mas apenas as notícias, não prestam atenção na autoria, dando força a informações apócrifas – o que favorece a atuação de trolls).
5. “mangueiras da falsidade” (campanhas de propaganda de ódio em massa mobilizando amplos grupos a agirem de maneira irracional).
Características da pós-verdade
A pós-verdade é essencialmente estruturada por dois processos. O primeiro é a formação de “bolhas” ou “câmaras de eco”, nas quais as pessoas ficam isoladas e expostas a visões unilaterais, o segundo é a disseminação de notícias falsas.
Como fato, temos a ausência de regulações como as que incidem sobre as instituições jornalísticas. A partir de uma lógica em que qualquer informação tem o mesmo peso, mesmo sem o menor compromisso com checagem ou comprovação de origem.
A pós-verdade se estrutura em uma gigantesca disseminação de informações falsas em velocidade e quantidade nunca vistas, que agem para influenciar a tomada de decisão das pessoas em diferentes esferas da vida, seja na política, economia, educação, saúde e etc.
Há uma dimensão determinante do fenômeno, que é a engrenagem da big data, que se relaciona não apenas com a produção em escala gigantesca de informação e com o impacto dessa informação na nossa vida, mas também com a própria maneira como a informação é produzida e disseminada.
Dissecando as estratégias da pós-verdade, Aparici e García Martín (2019) apresentam seu funcionamento.
a) clickbait ou caça-cliques: uso de títulos sensacionalistas para capturar usuários, gerar tráfico e benefícios com publicidade.
b) conteúdo patrocinado: publicidade que parece conteúdo informativo, mas com objetivos próprios.
c) sátira: uso de paródia com intenção de que as pessoas tomem a informação como correta.
d) conteúdo partidário: interpretações parciais da realidade mascaradas por aparência de neutralidade.
e) teorias da conspiração: narrativas que buscam, de forma simples, explicar realidades complexas como resposta ao medo e à incerteza.
f) pseudociência: negação de fatos cientificamente comprovados mediante interpretações parciais e tendenciosas.
g) desinformação: mescla de fatos reais e conteúdo falso, como falsa atribuição de autoria ou imagem.
h) fake news: conteúdos inteiramente falsos e inventados, fabricados e propagados deliberadamente para enganar as pessoas com objetivos políticos e econômicos.
Quanto as técnicas da linguagem, as principais estratégias são;
uso de metonímia,
manipulação de declarações,
polarização por meio do estereótipo,
descontextualização,
saturação de conteúdo,
modificação do significado de palavras,
uso de frases feitas,
apresentação de fatos aparentes,
argumentos vazios e exagerados,
omissão de fatos, adulação, agregados degradantes e opiniões diferentes segundo as circunstâncias.
E destacam ainda um último fator, o que chamam de política cyborg,
A difusão automatizada de conteúdos em redes sociais, mediante bots, especialmente no contexto de grandes eventos políticos e eleitorais, cada vez é mais frequente, e chegaram a ser um quinto das conversações registradas no Twitter nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos” (APARICI; GARCÍA MARTIN, 2019)
Consequências da pós-verdade
Análises consistentes sobre os efeitos da cultura da pós-verdade evidenciam a conexão a um determinado fenômeno político contemporâneo, associado ao enfraquecimento da democracia e à ascensão de líderes demagogos com tendências autoritárias que fazem uso massivo de fake news, tirando proveito do clima de desvalorização da verdade.
Como consequências da perpetuação do fenômeno da pós-verdade, Kakutani (2018) resgata os argumentos de Hannah Arendt, que defende
que o sujeito ideal para um governo totalitário é aquele para quem a distinção entre fato e ficção, verdadeiro e falso, deixa de existir.
Para Arendt, o perigo último da pós-verdade é a consolidação dos populismos e fundamentalismos, que pela corrosão da “ ideia de verdade”, destroem a democracia e impõem o medo e o ódio sobre o debate racional
Para Luis Alberto Oliveira - Filosofo e Dr. Cosmologia;
O conceito de crise já não da conta de explicar as experiencias de nosso tempo.Esta vivencia aproxima-se mais do conceito de Mutação Civilizacional. Estado que exige uma refundação, recriação.
Após este breve panorama sobre a cultura da pós verdade que desde 2016 atua sobre nossas vidas e mentes, não tenho como discordar de Luis Alberto, quando aponta a necessidade de uma refundação, visto que nas bases que seguimos as perspectivas são por demais sombrias.
E neste processo será necessário resgatar a verdade, que permitimos ser cooptada por uma combinação de mecanismo de dominação.
Quero destacar aqui a implicação de cada um de nós na aceitação e propagação de verdades fabricadas. Creio que chegará o dia da responsabilização individual por atos descuidados neste âmbito.
Se tomarmos o ano de 2016 como ponto de acirramento deste estado de caos, logo mais já teremos 1 década de experiência nestas bolhas delirantes, garantindo poder a populistas com direito a muita destruição do tecido social.
Espero que até lá sejamos capazes de identificar os riscos e possamos com coragem agir frente às tantas armadilhas a que somos expostos nestes tempos de sacrifício da verdade.
Cristiane Dodpoka
Psicóloga Clinica. Atendimentos OnLine a Adultos, Adolescentes e Casais. Especialista em Psicossomática Psicanalítica. Experiência em Saúde Mental e acolhimento a situações de crise. Coordenadora de Grupos Terapêuticos e Círculos de Dialogo. Consultoria e Atendimentos em Saúde do Trabalhador. Estudiosa de CiberPsicologia e CiberCultura.
Para esclarecimentos sobre atendimento Online, Palestras, Rodas de Conversas, Cursos, Grupos de Estudos e Consultorias, consulte: www.psicologacristianedodpoka.com
Referências
O fenômeno da pós-verdade: Uma revisão de literatura sobre suas causas, características e consequências. Por Carlos Alberto Ávila Araújo . 2020
SANTAELLA, L. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019.
McINTYRE, L. Posverdad. Madrid: Cátedra, 2018.
KAKUTANI, M. La muerte de la verdad: notas sobre la falsedad en la era Trump. Barcelona: Galáxia Gutemberg, 2019.
APARICI, R.; GARCÍA-MARÍN, M. (Coords). La posverdad: una cartografia de los médios, las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019
Luiz Alberto Rezende de Oliveira é físico, doutor em Cosmologia, foi pesquisador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (Icra-br) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CNPF). É curador do Museu do Amanhã.
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