Aqueles que já tiveram a oportunidade de trilhar o denso caminho de uma psicoterapia, sabem bem que esta não é tarefa simples.
Trata-se de um lugar paradoxal por essência, onde se tem a experiência do cuidado da própria biografia, com o testemunho e companhia de um outro ser humano, que apesar de suas qualificações, títulos, diplomas, anos de experiencia, o que terá de mais genuíno para te oferecer será explicitamente a sua condição de outro ser humano, que por ser quem é ... simplesmente outro mero humano, poderá ser capaz de ouvir, sentir e compreender por empatia as demandas que você trouxer a análise.
Deverá ter ainda, interesse verdadeiro pelo que é imperfeito em você, com o desejo de ao seu lado fazer esta travessia pelos pontos que são desconhecidos em sua personalidade e história pessoal.
Esta não é uma tarefa tecnologia, mas acima de tudo artesanal e humana. Com isto não quero dizer que este processo nunca seja falho, ou que vez ou outra seja impossível sentir respeito e simpatia pelo profissional que o acompanha. Por vezes podemos encontrar profissionais ruins, e diante destes casos o melhor a fazer é seguir em frente em busca de outro espaço de cuidado, já que este é um fenômeno de encontros humanos e por natureza solicita ajustes.
No entanto quando você se alinha e encontra um profissional que confie, inescapavelmente parte desta jornada envolverá perceber e lidar com o contraditório que localizamos em nós e no mundo.
Percebo que grande parte do sofrimento tem profunda relação com as expectativas distorcidas acumuladas ao longo da vida, sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre como a vida deveria ser, e na vida adulta nos deparamos com um processo necessário e intermitente, que é a desilusão. Assim também é a terapia, um lugar para desiludir-se.
O que aponto aqui como desilusão, não é algo negativo, mas sim a capacidade de diminuir ilusões e idealizações, compreender a essência dos fatos, e buscar recursos internos para lidar com nossas fragilidades e as imperfeições do mundo e dos outros.
Acontece que na atualidade o ato de acolher desilusões, de estar com outro ser humano e ter diante de si, espelhada, toda a complexidade desta condição, não tem sido suportável para muitos de nos. Byung-Chul Han, teoriza esta tendência como “O terror do idêntico”, que;
Atinge hoje todas as áreas vitais. Viajamos por toda a parte sem ter experiência alguma. Ficamos ao corrente de tudo sem adquirir com isso conhecimento algum. Buscamos ansiosamente vivências e estímulos com os quais, todavia, cada um continua sempre idêntico a si mesmo. Acumulamos amigos e seguidores sem experimentarmos nunca o encontro com alguém diferente. Os meios sociais representam um grau zero do social.” Byung-Chul Han, in “A Expulsão do Outro”
É neste contexto de grandes crises e mutações no modo de existir, relacionar-se e de ser um “HUMANO”, que trago a discussão sobre matéria recente da revista Exame, que aborda um vertiginoso crescimento do interesse por atendimento "psicológico" feito por assistentes virtuais, são os chatbots.
Vamos ao cenário atual discutido na matéria, com o seguinte titulo: Terapia por IA: atendimento 24h, barato e sem julgamentos atrai pacientes. Mas funciona ?
Estudo recente com 1.200 usuários do chatbot Wysa identificou que uma "conexão terapêutica" entre bot e paciente se desenvolveu em apenas cinco dias. A pesquisa, conduzida por psicólogos da Universidade de Stony Brook em Nova York, do Instituto Nacional de Saúde Mental e Neurociências na Índia, e do próprio Wysa, indicou que pacientes acreditavam que o bot além de se importar, os respeitava e tinha afeto por eles.
Com mais de um milhão de downloads na Apple Store o Wysa, não é exceção para quem busca atendimento psicológico por inteligência artificial. Outro recurso muito popular, o character.ai é um modelo de linguagem neural capaz de simular ser qualquer pessoa, inclusive o seu psicólogo pessoal, que poderá ter características de acordo com suas expectativas e necessidades.
A empresa idealizadora do Character.ai minimiza a popularidade da conta, argumentando que os usuários estão mais interessados em entretenimento. No entanto, entre os milhões de personagens existentes na plataforma, poucos são tão populares como o Psicólogo, que recebeu 12 milhões de mensagens.
Existem ainda os assistentes virtuais Earkick e Woebot, chatbots de IA projetados para atuar como companheiros de saúde mental.
Psicólogos alertam que os bots de IA podem dar conselhos inadequados aos pacientes ou reproduzir preconceitos de raça ou gênero.
Contraditoriamente aos riscos apontados, observa-se uma tendência em curso onde utiliza-se os bots de IA como ferramentas para lidar com a alta demanda em serviços públicos.
No ano passado, um serviço de IA chamado Limbic Access tornou-se o primeiro chatbot de saúde mental a receber do governo, no Reino Unido, uma certificação de dispositivo médico. Agora é usado em muitos postos do serviço público de saúde britânico para classificar e fazer a triagem de pacientes.
Aos usuários destes serviços, os atrativos não são poucos, a IA é barata e conveniente, está sempre disponível, e as personalidades dos chatbots podem ser instantaneamente adaptadas às preferências do usuário, reduzindo qualquer possibilidade de contradição ou conflito que poderia acontecer com um terapeuta humano.
Outra vantagem seria a capacidade dos chatbots garantirem anonimato e privacidade aos usuários. Contribuindo, para que essas pessoas se sintam mais confortáveis em compartilhar seus pensamentos e emoções.
Apesar de um discurso supostamente responsável onde é informado em seus termos de uso que um chatbot não substitui ajuda profissional, o que se nota é que desenvolvedores podem contornar a regulamentação rotulando seus aplicativos como produtos de bem-estar, mesmo quando anunciam serviços terapêuticos.
Não apenas os aplicativos podem dispensar conselhos inadequados ou até perigosos; eles também podem coletar e monetizar os dados pessoais íntimos dos usuários. Uma pesquisa da Fundação Mozilla, um observador global independente, descobriu que, dos 32 aplicativos populares de saúde mental, 19 não estavam protegendo a privacidade dos usuários. "Obviamente estou preocupado com questões de privacidade de dados," diz Zaia, o criador do psicólogo da Character.ai ao Guardian. "Um psicólogo é legalmente obrigado a praticar de determinadas maneiras. Não existem esses limites legais para esses chatbots."
Para muitos empreendedores de T.I, o futuro deste mercado é promissor e ancora-se na explosão da demanda de saúde mental e na escassez de clínicos. "A prevalência de doenças e a necessidade do paciente superam em muito o número de profissionais de saúde mental vivos no planeta," diz Ross Harper, CEO da ferramenta de saúde AI Limbic, ao jornal The Guardian.
Alcançado o conteúdo que eu pretendia trazer a reflexão, muitas são as perguntas e pontos críticos diante deste cenário distópico que vivemos, que evidentemente não serão esgotadas neste artigo,
Minhas reflexões abarcam tendências já observadas no fluxo acelerado da digitalização que vivemos e que seguem se aprofundando também neste contexto.
Nem sempre o que é terapêutico é psicoterapia. Parece um dado semântico, mas não é. Fica um alerta aqui sobre os limites e fronteiras de cada profissão. Ate o momento organizamos a sociedade de modo a respeitar limites e regulamentações, agora no ciberespaço e cibercultura estas fronteiras tornam-se rarefeitas a ponto de uma empresa criar um aplicativo de cuidados de saúde mental e não responder a regulamentações.
Futuros e destinos da profissão: Não é novidade a precarização que o trabalho deste profissional vem sofrendo na última década. Ha uma forte pressão pelo ingresso em uma lógica plataformizada, que além de desvalorizar o trabalho, estabelece uma política de competição incompatível com as premissas da profissão.
Quem será responsável pelas consequências de interações inadequadas, que produzem dependência afetiva e prejudicam a emancipação de seus usuários?. Já que se trata de uma abordagem de cuidado a saúde, será fundamental discutir regulamentações e responsabilidades.
Há uma explosão nas demandas de saúde mental, com profundo déficit de serviços especializados. Cuidar disto é responsabilidade do estado e da sociedade, que não resolverá o problema com medidas inadequadas e irresponsáveis. Saúde Mental é um tema amplo e transversal e exige Políticas Públicas consistentes.
Os conselhos de classe e órgãos governamentais responsáveis por processos de regulamentação da profissão, estão fazendo esta discussão sobre questões éticas e os limites destes serviços digitais?
Em nome do conforto absoluto e facilidades típicas de um mundo hiperconectado, estamos aceitando passivamente serviços que produzem robotização da vida e das relações, sem cobrar a menor responsabilização destas empresas?
Compreendemos os riscos de cooptação de nossos dados e conteúdos sensíveis quando compartilhamos temas íntimos com I.A?
Questionamos a opacidade e falta de garantias de sigilo dos dados coletados, nos perguntamos a quem estes dados servem?
Compreendemos os riscos civilizatórios desta brutal monetização do sofrimento?
E para concluir, retorno ao início deste texto onde aponto as complexidades de um processo psicoterapêutico e o quanto este caminho é essencialmente imperfeito e humano, portanto improvável de ser realizado por aparatos digitais, sem distorções ou prejuízos.
Me pergunto ainda, o tamanho do sofrimento de uma sociedade que ao longo de seu desenvolvimento negligenciou a importância dos processos de cuidado e o direito universal a saúde, e que hoje segue vulnerável a tendências predatórias.
Como produção coletiva de mais uma forma de sofrimento, temos hoje um contingente de sujeitos que buscam I.A´s para supressão de suas angustias, acreditando que esta seja a única forma de cuidado que possam receber.
Ou quem sabe este seja somente o admirável mundo novo, repleto de sujeitos em uma saga narcísica, apenas vivendo o terror do idêntico, desejando sempre mais e mais de si mesmo, neste processo de plastificação da vida onde não suportamos mais o que é humano em nos mesmos.
Cristiane Dodpoka
Psicóloga Clinica. Atendimentos OnLine a Adultos, Adolescentes e Casais. Especialista em Psicossomática Psicanalítica. Experiência em Saúde Mental e acolhimento a situações de crise. Coordenadora de Grupos Terapêuticos e Círculos de Dialogo. Consultoria e Atendimentos em Saúde do Trabalhador. Estudiosa de CiberPsicologia e CiberCultura.
Para esclarecimentos sobre atendimento Online, Palestras, Rodas de Conversas, Cursos, Grupos de Estudos e Consultorias, consulte: www.psicologacristianedodpoka.com
Referencias
HAN, Byung- Chul. A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Petrópolis: Vozes, 2022
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