Foi em 2020, ainda submersa pelas incertezas que a crise sanitária trouxe ao mundo, que comecei a me preocupar com os impactos psicossociais que a hiper digitalização tem produzido a esta civilização.
Por óbvio, o fenômeno da aceleração tecnológica não começou em 2020, mas me parece que por conta do isolamento social e todas as consequências geradas pela necessidade de funcionarmos remotamente, algo mudou.
Uma nova chave foi acionada, e o que já estava ferozmente veloz em nossas relações e comunicações, acabou por tomar um outro rumo.
Para além dos noticiários e estatísticas, os efeitos começaram a aparecer no consultório e nos diversos projetos que eu atuava como Psicóloga Clínica. No ambiente corporativo por exemplo, onde atuo em Programas de Qualidade de Vida, me chamou atenção a busca por suporte especializado para tratar do tema suicídio e transtornos mentais graves, já que a ocorrência destes fenômenos tornou-se mais frequente também nestes espaços.
Pude constatar que enquanto sociedade, estávamos mais doentes. E para lidar com os novos arranjos societais, percebi que meu repertório teórico clínico, teria de expandir e adaptar-se aos desafios da cibercultura.
Para ter apoio e retaguarda afetiva juntei-me a outros profissionais, para pensar coletivamente as complexidades deste tempo. Aqui quero mencionar e agradecer aos parceiros e parceiras da Rede Matraga Sedes, que tem me auxiliado nesta travessia.
Conheci ainda, para além dos campos de estudos psicanalíticos, filosóficos e sociológicos, a Ciberpsicologia uma disciplina emergente dedicada a investigar as repercussões dos meios digitais à subjetividade humana, e o surgimento de novos processos psíquicos e formas de sofrimento mental, resultantes do exponencial aumento do uso das TICs -Tecnologias da Informação e Comunicação. Para a professora Veronique Donard, estudiosa da área;
“ A filosofia da técnica e a fenomenologia nos ensinam que o uso de uma ferramenta influencia e modifica nossos modos de percepção e de construção da realidade, e toda apreensão de um fenômeno é condicionada por seu contexto sociocultural.
Em nossa sociedade digital, tornou-se necessário “renegociar o ato de percepção como tal” para poder lidar “com objetos para os quais não tínhamos hábito perceptivo”
O digital tornou-se, assim, não apenas um “simulador” da realidade, mas o criador de uma neorealidade que percebemos e aceitamos como tal”.
Outro conceito relevante para esta discussão é o de CIBERCULTURA.
Em Pierre Levy encontraremos que, a cibercultura se dá no ciberespaço que é lugar de circulação de informação, espaço de comunicação e virtualidade, no entanto não existe em oposição ao real. Para além da infraestrutura é ainda ambiente simbólico, meio por onde comunidades virtuais se constituem.
Diante desta neorealidade, somos convocados a existir de outras formas, e a forjar novas subjetividades, nem sempre muito bem compreendidas ou funcionais.
Pelos tantos episódios extremistas e desarranjos sociais que observamos na última década, é certo que esta convocação não é algo banal ao sujeito pós-moderno, e tem produzido repercussões significativas aos nossos afetos, processos cognitivos e capacidades de estar em relações sociais.
O historiador Yuval Harari, em diversas de suas obras aponta o risco de controle massivo da existência humana por aparato tecnológico, alterando definitivamente as estruturas sociais que conhecemos hoje.
A professora Soshana Zuboff, nos traz uma perspectiva ainda mais contundente e sinaliza;
"o surgimento de uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima, uma lógica econômica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento; estrutura que serve de base para a economia de vigilância”
Para alguns, estas visões podem soar um tanto catastróficas, mas de fato não temos respostas definitivas sobre o que este horizonte aparentemente sombrio nos reserva. O que me parece definido é o estado de estranheza que vivemos e a urgente e inescapável necessidade de buscarmos uma outra visão de futuro, sem ingenuidades.
Não é meu objetivo condenar o desenvolvimento tecnológico que estamos a assistir na atualidade, que decerto tem potencial para melhorar absurdamente a vida social. Contudo o que observamos é que por uma questão de limite de acessos, as benesses de tais avanços não alcança a todos. Meu ponto aqui diz respeito a uma preocupação ética e a crença de ser possível a criação de caminhos sustentáveis de crescimento civilizatório.
Seja no consultório, nos espaços de reflexão ou na vida cotidiana, vejo o sofrimento mental aprofundar-se feito abismo, como consequência direta de um modelo social que passivamente adotamos.
Questões fundamentais, desde então são tema de meus estudos e preocupações, e na tentativa de construir algumas respostas, me pergunto que futuro estamos construindo. O que podemos mudar para que estes destinos sejam mais éticos e igualitários? São reflexões que tenho me dedicado, para citar apenas algumas:
· Aceleração, e o mal-estar ligado à percepção temporal.
· Riscos a Infância e Adolescência em ambiente digital.
· Aliciamento de menores a crimes cibernéticos.
· Risco civilizatório pelo acirramento do discurso de ódio, cultura de cancelamento nas redes sociais.
· Estimulo a violência em espaço escolar.
· Consequências sociais na Era da Pós-verdade, e seu uso político por aparato fake news e deep web.
· Uso antiético e discriminatório de Inteligências Artificiais – Racialização Digital
· Substituição arbitrária do trabalho e criatividade humanas, por Inteligência Artificial
· Colonialismo de dados e da vida.
· Saúde Mental na Economia da Atenção.
· Brutal Precarização do Trabalho.
· Elevado índice de transtornos mentais e ampliação do risco de suicídio.
· A urgência da regulamentação das plataformas, para sustentação de espaços democráticos.
· Antropoceno e a necessidade de sonharmos novos futuros.
Estou certa que estes são problemas imensos e tarefa de muitos, e que será necessário mobilizar profundas camadas sociais para que qualquer possível enfrentamento se faça.
Alguns teóricos avaliam que esta experiência que vivemos não tem precedente na história moderna. Para Luis Alberto Oliveira - Filosofo e Dr. Cosmologia;
“O conceito de crise já não da conta de explicar as experiências de nosso tempo”. “Esta vivencia aproxima-se mais do conceito de Mutação Civilizacional”. “Estado que exige uma refundação, recriação".
A partir desta breve síntese de minhas impressões do momento social que vivemos, compartilho que pretendo utilizar deste espaço de escrita, para refletir com quem também se incomoda e preocupa-se com os efeitos sociais, emocionais e acima de tudo civilizatórios do que estamos fazendo coletivamente de nosso planeta e de nossas vidas, que terá profundas e irreversíveis consequências ao que será de nosso futuro.
Em consonância com o que venho pensando, imagino que outros profissionais da saúde, da comunidade escolar, pais e cuidadores, pessoas interessadas em direitos humanos e desenvolvimento social, profissionais de recursos humanos e saúde do trabalhador, além de qualquer pessoa que sinta sua saúde mental prejudicada por estes fatores que mencionei, possam certamente contribuir com as reflexões que pretendo trazer aqui.
Fique à vontade para compartilhar suas impressões e reflexões sobre estas ideias.
Será muito bom saber, como você tem percebido este imenso processo de transformação que estamos atravessando.
Cristiane Dodpoka
Psicóloga Clinica. Atendimentos OnLine a Adultos, Adolescentes e Casais. Especialista em Psicossomática Psicanalítica. Experiência em Saúde Mental e acolhimento a situações de crise. Coordenadora de Grupos Terapêuticos e Círculos de Dialogo. Consultoria e Atendimentos em Saúde do Trabalhador. Estudiosa de CiberPsicologia e CiberCultura.
Para esclarecimentos sobre atendimento Online, Palestras, Rodas de Conversas, Cursos, Grupos de Estudos e Consultorias, me consulte;
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Referências.
Yuval Noah Harari é professor israelense de História e autor do best-seller Sapiens: Uma breve história da humanidade, Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã e 21 Lições para o Século 21. Leciona no departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Shoshana Zuboff é professora aposentada de administração de negócio pela Harvard Business School, é Ph.D. em psicologia social da Universidade de Harvard e bacharel em filosofia pela Universidade de Chicago.
Pierre Lévy é filósofo e sociólogo francês. Pesquisador em ciência da informação e da comunicação, suas pesquisas se concentram principalmente na área da cibernética. Dedica-se ao estudo do impacto da Internet na sociedade, das humanidades digitais e do virtual.
Véronique Donard, Universidade Católica de Pernambuco.Programa de Pós-Graduação em Psicología Clínica, Doutora em Psicologia. Artigo : O Psicólogo frente ao desafio tecnológico: Novas identidades, novos campos, novas práticas [Costa Fernandez, E. M. et Donard, V. (dir.) (2016). Recife, Brésil: Editions UFPE et UNICAP. (ISBN : 854150752-1)]
Luiz Alberto Rezende de Oliveira é físico, doutor em Cosmologia, foi pesquisador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (Icra-br) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CNPF). É curador do Museu do Amanhã.
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