Atuar em Projetos de Saúde Ocupacional me permitiu testemunhar muitos profissionais fazerem a travessia pela experiência do Burnout.
Aqui eu uso a expressão “experiência ” pelo cuidado de não patologizar este fenômeno e apresenta-lo mais como uma consequência psicossocial deste tempo, do que apenas algo individual de cada sujeito.
Com isto quero dizer que como os processos de sofrimento são historicamente construídos, o Burnout é como que uma radiografia desta sociedade. Eu gosto de pensar no poder de denúncia que certos fenômenos psíquicos, podem realizar.
De certo modo o Burnout, e tantos outros adoecimentos crescentes na atualidade, denunciam as falácias da sociedade pós-moderna, que teve um crescimento vertiginoso, porém marcado por um profundo processo de perdas sociais e precarização da vida.
Onde seus modos de relação, trabalho e organização coletiva demonstram a insustentabilidade em sua essência, e tem levado milhões de pessoas para além de seus limites, produzindo graves diagnósticos mentais e inclusive ampliado o risco de letalidade por suicídio. ( Em 2020 o Brasil registrou 14.084 óbitos por suicídio).
Nos espaços de escuta que pude realizar a trabalhadores e trabalhadoras, a experiência subjetiva me pareceu ser universal, e apontava para uma complexa e talvez insustentável relação com o trabalho, permeada por um desejo idealizado de alta performance, e consequente estado de exaustão que domina a vida. Em contrapartida observei um crescente desejo das pessoas por espaços de escuta e pertencimento.
Para o filosofo sul-coreano Byung-chul Han, Burnout é a expressão de uma profunda crise da liberdade. Experiência de uma “sociedade do desempenho”, onde a alta performance se torna a finalidade última. Aponta a crença de que todas as metas são alcançáveis, basta trabalhar para isto.
O conceito de multi-tarefas é uma competência indispensável ao empreendedor de si-mesmo, onde o excesso de estímulos, não permite espaço para elaborações afetivas.
Com isto vivemos uma perda da capacidade de aprofundamento contemplativo, e um estado de atenção hiper vigilante.
Aceleração, uma nova experiência do espaço-tempo
Para aprofundar esta reflexão, trago a ideia de que na atualidade a hiperconexão imersiva no digital produz uma percepção de instantaneidade, capaz de desconstruir o paradigma espacial geográfico antes conhecido por nós.
“ Em nosso tempo digital, cronometrado por máquinas que parecem acelerar a substância de nossas vidas, as revoluções provocadas pela cibercultura resultaram, com o tempo, na extrapolação das atividades produtivas.( Alcântara et al.,2021)
É tempo do excesso ... da hiper conexão sem laço, da transparência e do cansaço. O digital parece exacerbar a busca incessante por um excesso de tempo que não se vive.( Alcântara et al.,2021)
Atualmente, o sujeito é marcado por um excesso que o lança sempre a mais atividade para livrá-lo o máximo possível de sua angústia”( Martins, 2018)
Para o sociólogo Hartmut Rosa, desde o início da industrialização, países ocidentais vivenciam um processo tríplice de aceleração, dada a expansiva velocidade dos transportes e da comunicação: uma aceleração técnica, social e do ritmo de nossas vidas.
Classifica a aceleração tecnológica como;
A aceleração intencional de processos orientados a metas no campo do transporte, da comunicação e da produção”, que permitiu o aumento de rendimento por unidades de tempo (Rosa, 2013).
Este processo, de forma contundente seria o responsável pela nova percepção espaço-tempo que passamos a compartilhar e viver na organização da vida coletiva.
Rosa, fala em uma percepção de tempo que está se dissolvendo, devido à pressão que a aceleração técnica e social exerce sobre nossos quotidianos, comprimindo nosso ritmo de vida, a abre um debate sobre a urgente necessidade de desaceleração.
Como efeito desta aceleração temporal, nossa percepção de espaço também é impactada;
“A prioridade “natural” (antropológica) do espaço sobre o tempo na percepção humana [...] parece ter se invertido: na era da mundialização e da Internet, o tempo é cada vez mais compreendido como um elemento de compressão ou inclusive de aniquilação do espaço. O espaço parece se contrair virtualmente pela velocidade dos transportes e da comunicação (Rosa, 2014).
E se o espaço-tempo se contrai, nossa experiência do presente, do passado e do futuro, lugares de elaboração de nossa subjetividade, também se contrai. ( Donard, 2023).
E aqui, alcanço a ideia que me motivou a escrita do texto de hoje, que é a urgência de perceber e resgatar o próprio ritmo, apesar deste frenesi que a vida tornou-se na contemporaneidade. E tenho as seguintes indagações ;
Será possível resgatar da memória qual era nosso ritmo, nossa cadencia, nosso passo, antes de tudo ter sido acelerado a níveis insustentáveis ?
Como as subjetividades serão tecidas a partir desta aceleração espaço-temporal ?
Quais os impactos ao psiquismo e saúde mental diante da compressão do tempo e recursos para elaborar as complexas experiências que nos atravessam na atualidade?
E aqui a questão mais relevante para mim;
É possível lembrar o que existia aqui dentro de nossos afetos, antes de sermos capturados pelo excesso de estímulo, que hoje nos atravessa a cada instante?
Como um exercício de reflexão tento falar por mim e por alguns que escuto em minha clínica.
Eu tenho uma vaga ideia, que antes existia provavelmente muitas dúvidas, dores, amores, desejos, sonhos, as vezes vazio, raiva, medo e até pensamentos inomináveis.
Mas para além disto, devia existir a constante tentativa de entender ou quem sabe negar a nossa condição humana, condição está de fragilidade e finitude, temperada com muita potência e coragem de enfrentar o desconhecido a cada nova manhã.
Afinal de contas é isto que é ser gente e ter de lidar com toda a complexidade e ambivalência que esta condição exige.
Já caminhando para as conclusões, retomo o início deste texto onde aponto que, em minha perspectiva, o Burnout é a denúncia de uma crise de ausência de sentidos.
Estamos no limite dos recursos do planeta, experimentando um estado de ruína que desmonta estruturas, frente a complexidade dos novos tempos. Nos vemos imersos a uma sociedade distópica, cindida e rasgada em seu tecido social, saudosa de ideais sustentadores.
No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, Airton Krenac questiona o ideal de humanidade da civilização ocidental, que norteou os processos de colonização e a descoberta de novos territórios, mas que em nome de um desenvolvimento unilateral acabou por dizimar populações inteiras, trouxe sofrimentos inenarráveis, violência e como legado produziu o acirramento da desigualdade em nível global, capturando não somente vidas, mas toda uma história ancestral da humanidade.
“ Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros. (Airton Krenac)
Tenho certeza que estamos indo rápido, só me pergunto se ainda chegaremos a algum lugar seguro ou quem sabe possível, lançando mão de ideais e modos de viver insustentáveis.
E você, se lembra de seus ritmos?
Cristiane Dodpoka
Psicóloga Clinica. Atendimentos OnLine a Adultos, Adolescentes e Casais. Especialista em Psicossomática Psicanalítica. Experiência em Saúde Mental e acolhimento a situações de crise. Coordenadora de Grupos Terapêuticos e Círculos de Dialogo. Consultoria e Atendimentos em Saúde do Trabalhador. Estudiosa de CiberPsicologia e CiberCultura.
Para esclarecimentos sobre atendimento Online, Palestras, Rodas de Conversas, Cursos, Grupos de Estudos e Consultorias, consulte: www.psicologacristianedodpoka.com
Referencias
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
ALCANTARA, Samuel; MARTINS, José Clerton de Oliveira; BARBOSA JUNIOR, Francisco Welligton de Sousa e LIMA, Maria Celina Peixoto. Notas sobre o mal-estar na cibercultura em tempos de hiperaceleração digital. Tempo psicanal. [online]. 2021, vol.53, n.1 [citado 2024-02-27], pp. 221-248 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382021000100010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0101-4838.
Martins, J. C. (2018). Ócio na contemporaneidade cansada. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, 35-44.
Donard, Véronique. (2023). Mutações psíquicas e culturais. Atualidades e horizontes de uma sociedade hiper-digitalizada.
Rosa, H. (2013). Accélération. Une critique sociale du temps. La Découverte.
Rosa, H. (2014). Aliénation et accélération Vers une théorie critique de la modernité tardive [Versão digital]. La Découverte.
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