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Armagedon ou Alvorada?

Foto do escritor: Cristiane DodpokaCristiane Dodpoka

Não dava mais para adiar, apesar do desânimo, esta manhã Maria Anunciação recebeu um ultimato de seu editor, com a promessa de que se não entregasse seu texto até o final da tarde, já poderia procurar outro lugar para trabalhar.


Há tempos sentia-se paralisada e com dificuldades em realizar o seu trabalho, mas a situação da pandemia e o confinamento agravaram as coisas.


Não tinha a menor ideia de como começar, sua tarefa de hoje era escrever qualquer coisa sobre o momento atual para uma coluna de debates sociológicos, mas tudo parecia tão despropositado que a abrangência desta encomenda a fazia sentir-se por demais oprimida.


Olha pela janela, um dia cinza existe la fora. Um frio na espinha e bolo no estômago sacodem o seu corpo e provocam uma ideia ainda incipiente, antes que tudo lhe escapasse como tantas outras vezes já ocorreu, reúne forças e começa a escrever.


Não gosta muito do título, "Armagedon ou Alvorada", não parece nada comercial, ignora este pensamento e segue o fluxo mesmo assim.


O frio na espinha e bolo no estomago, ainda estavam ali, não se espanta talvez estes sejam sintomas comuns destes tempos, decide suspender os julgamentos e tentar escrever esta ideia mesmo com tantos pesares a sua volta.


Titulo: Armagedon ou Alvorada?

Por: Maria de Anunciação,

“ O cenário futurístico e apocalíptico que se projetava anos à frente, já está aqui.

No entanto, anestesiados demais para sentir medo, seguimos o fluxo sem grandes reflexões, sem perceber que as narrativas de ficção cientifica, já são a nossa realidade.

Talvez poucos tenham percebido, mas há lá fora um estado de ruína, algo que derrete as estruturas conhecidas, feito fogo lento que consome a cera de uma vela, como espuma do mar que chega voluntariosa e espessa ao litoral, mas por fim se espraia, desvanece na aspereza do banco de areia, tornando-se neste encontro apenas mais uma camada de relevo neste solo.

Esta tal ruína tem muitas caras; pode ser a intolerância generalizada, os retrocessos civilizatórios ou a fragilização das democracias.

Pode ainda ser a apropriação de subjetividades pela lógica neoliberal, e as graves ameaças ao clima, ou mesmo o uso sem precedentes de tecnologia avançada para a manipulação de verdades com consequências políticas imensuráveis.

Em sua mais recente e assustadora versão, é também o risco de controle absoluto da existência humana por aparato tecnológico, a ponto de comprometer acordos de convivência estabelecidos pela humanidade desde os ideais iluministas.

Apesar do tom trágico, talvez não seja o fim de tudo, mas espero que seja o fim de um Tudo por demais cristalizado, disfuncional e conhecido.

Tão conhecido que perdeu-se em suas certezas

Esta experiência de ruir carrega em seu ventre a contradição, pois anuncia o término do que se desgastou e não pode se reconfigurar.

Mas abriga o que é assustadoramente inédito, sem precedentes e exigirá para tanto outros ideais e pressupostos para criação de uma nova coletividade.

E como não custa nada sonhar, que seja quem sabe agora, verdadeiramente em liberdade, igualdade e fraternidade.

Aqui de dentro, observar-se a ruína em seu curso progressivo e implacável. Sorrateira trabalha de modo a iludir os distraídos que permanecem hipnotizados pela promessa de uma vida líquida, governada por comodidades tecnológicas, alheios ao preço cobrado pelo conforto de que desfrutam.

Obstinada em seu ofício de ruir, a ruína segue firme esfacelando estruturas que já se mostravam frágeis frente as complexidades dos novos tempos.

Os despertos e sensíveis aos movimentos da ruina, reúnem-se para discutir como será possível seguir em frente em uma sociedade distópica, cindida e rasgada em seu tecido social, saudosa de ideais sustentadores e estruturas institucionais protetivas.

Preocupados, reconhecem que não há pai, nem mãe, nem estado, nem igreja, nem utopias, tampouco referências norteadoras.

Só há o Nada, vestido de ausência do que é conhecido.

Será o Nada o fim, ou apenas a cara feia da contradição?

Contradição esta que nos tornamos incapazes de suportar coletivamente.

Ainda assim, e contraditoriamente, o nada como página em branco que é, pode nos permitir a oportunidade de fazer a vida como nunca antes vista, e talvez só nos reste isto mesmo, frente a ausência de referenciais contemporâneos eficientes.

Outro grupo, os idealistas acreditam que caso tenhamos a humildade de recorrer a sabedoria dos povos ancestrais, aqueles que já existiam antes de tudo existir, e são mais alinhados às necessidades do planeta, conscientes de que somente uma vida comunitária nos garantirá sustentabilidade e algum futuro possível, que não seja a auto destruição.

Quem sabe assim teremos alguma sorte, nesta pretensa Alvorada.

No livro “ Ideias para adiar o fim do mundo” , Airton Krenac questiona o ideal de humanidade da civilização ocidental, que norteou os processos de colonização e a descoberta de novos territórios, mas que em nome de um desenvolvimento unilateral acabou por dizimar populações inteiras, trouxe sofrimentos inenarráveis, violência e como legado produziu o acirramento da desigualdade em nível global, capturando não somente vidas mas toda uma história ancestral da humanidade.

“ Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em

sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros .

(Airton Krenac)

No livro, imagino que adorado pelos idealistas, a proposta para sobreviver ao fim do mundo, passa pela busca de sentido e pertencimento, além do desenvolvimento de uma cosmovisão que contempla outra relação entre as pessoas e o planeta, fatores estes que uma vida individualista, urbana e centrada na premissa do consumo descontrolado não nos permite experimentar.

Neste novo modo de existência e relação, quem sabe agora, esteja incluído proposito, ética, coragem e dignidade, que contemple todos e não somente alguns.

Com a necessidade de instituir valores civilizatórios, que possam garantir alguma sustentabilidade a nossa convivência neste planeta.

Não há retorno, nesta bifurcação só nos resta assumir a missão de construirmos uma sociedade mais comunitária, por conta própria, já que não há mentores e lideres interessados em nos guiar nesta trajetória.

Cada SER HUMANO em seus papéis cotidianos, tem o potencial de criar um outro existir

Daqui de dentro dá para ver que, apesar da cera que derrete e da espuma que se afunda na areia, nada deixou de ser apenas toma outra forma, é possível ver a transformação, a transição de elementos acenderem a novas condições de existência

A ruína faz lembrar uma chance, um chamado, uma nova responsabilidade de construir modos únicos e sustentáveis de viver.

Quem sabe agora em Alvorada, ancorados em uma visão pluralista e justa sobre o que de fato a existência coletiva tem potencial para ser”


A esta altura, a jornalista Maria de Anunciação sente um profundo alívio por ter conseguido escrever como há tempos não fazia.

A angústia, sua companheira de todo dia, parece ter se dissolvido nas páginas escritas, até o ar da sala onde trabalhava, que antes era denso agora tinha alguma suavidade.

Como era bom poder voltar a respirar.

Certamente este era um material que seu editor aprovaria, olha novamente pela janela e observa a vida que se desenrola lá fora, tudo absolutamente igual.

E então os julgamentos retornam feito lobos ferozes, e se pergunta, ainda mergulhada nas verdades de seu próprio texto.

Quanta ingenuidade, mas quem lá fora quer pensar sobre o que lhes rouba a paz e felicidade fabricada?

Talvez os idealistas?

E como uma barragem que estoura, o frio na espinha retorna agora com toda força, e traz a incerteza se este seria mesmo um texto capaz de agradar seu editor e aos seus leitores, nestes tempos em que somente as verdades agradáveis podem ser toleradas.


Cristiane Dodpoka


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Psicóloga Cristiane Dodpoka

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